A pretexto de conferir proteção à privacidade dos seus usuários, as redes sociais acabam por garantir-lhes o poder de ‘informar’ e opinar anonimamente.
Por Afranio Affonso Ferreira para O Estado de S. Paulo
Imagine o distinto leitor ser ofendido, injustamente agredido em público na internet, diante da incontável plateia das redes sociais. Para piorar a arbitrariedade, viria acompanhada da pior das covardias: o anonimato. Nessa temível abstração, será quase impossível ao leitor exercer a sua defesa, o que talvez fizesse pleiteando a condenação civil ou penal do ofensor, ou ainda exigindo-lhe também o direito de resposta.
A conjectura pode resultar em consequências ainda mais amplas e graves, caso os vilipêndios sejam assacados contra uma empresa, por exemplo. Pode pôr em risco a sua sobrevivência e, com isso, os empregos que ela gera. Tudo sem que os prejudicados possam se defender, por desconhecerem o agressor.
Pois bem, na mesma frase em que garantiu a liberdade de manifestação do pensamento, a Constituição federal proibiu que tal expressão seja feita anonimamente (artigo 5.º, inciso IV). De igual forma, ditou que a informação não sofrerá qualquer restrição, observados os dispositivos da mesma Norma Maior (artigo 220), entre eles a vedação ao anonimato.
A lógica é de justiça acaciana. Assegura-se a liberdade de expressão e de informação desde que seja identificável o autor da mensagem. Caso contrário, fosse garantida a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, a obscuridade quanto ao emissor, teríamos a república da irresponsabilidade: expresso-me e informo como e o que bem entender, sem que os prejudicados possam me responsabilizar. Sou anônimo, blindado, um alienígena.
Mas a vedação serve, sobretudo, como sustentação às liberdades de expressão, de informar e de ser informado. Sem a correlata responsabilidade pelo que se diz, não é possível garantir tais liberdades, sob pena de admitir um direto absoluto, superior a outros valores fundamentais, como, por exemplo, o direito à honra, à intimidade, etc. Além disso, é intuitivo o descrédito de informação sem autoria.
Porém, enquanto a proibição ao anonimato é plenamente vigente para a veiculação de informações e opiniões pela imprensa dita “tradicional”, há searas nas quais o anonimato é protegido, garantido na prática.
Na imprensa, a responsabilização por abusos não enfrenta problemas de identificação. A grosso modo, por matéria escrita ou falada, respondem o próprio autor, se identificável, juntamente com o veículo. Alternativamente, inclusive, se assim preferir o ofendido. Pode acionar o autor da suposta ofensa e/ou o veículo. Seja ele divulgado de forma impressa, radiofônica, televisiva ou via rede mundial de computadores.
O problema, o imenso problema do qual docemente se beneficiam as redes sociais é que, a pretexto de conferirem proteção à privacidade dos seus usuários, acabam por garantir-lhes o poder de informar e opinar anonimamente. Podem fazê-lo utilizando nomes e perfis falsos, maliciosamente se conectando por meio de servidores no exterior, sem externar a sua real identidade. Com tais artimanhas, impossibilitam aos ofendidos o direito de ação, porque eles simplesmente não têm como identificar os ofensores. São insultados por seres inatingíveis, albergados que estão sob inconstitucional anonimato, talvez apenas culposamente garantido pelo Marco Civil da Internet.
Em resumo, porque dentre as obrigações atribuídas pelo aludido Marco Civil aos provedores de aplicações (Facebook, Twitter, etc.) não estão a coleta e a guarda dos dados pessoais (CPF, RG, etc.) dos seus usuários. A lei não impõe que tais provedores exijam, no momento do cadastro, informações idôneas e suficientes para certificar a identidade de seus usuários. Essas empresas têm como encargo exclusivo a manutenção dos registros de acesso às aplicações, que, infelizmente, no mais das vezes não possibilitam a identificação dos emitentes de informações e de opiniões capciosas, sobretudo porque muitos desses infratores se valem de peraltices tecnológicas para que seus vestígios na rede não sejam rastreáveis.
Dir-se-á, com diminuta razão e exagerada abstração da realidade, que o privilégio aos usuários se funda na necessária proteção de seus dados e na celeridade de uso que a internet requer.
O que parece esquecido nessa lógica, e ignorado dolosamente por quem do anonimato mais se favorece, é o direto de ação. Os direitos à honra, à privacidade e à reparação detidos por cidadãos e empresas achacados por ofensas, prejudicados por mentiras e fake news publicadas sob autoria secreta, estribada no angelical argumento da preservação da privacidade (dos detratores).
Daí porque, caso o Marco Civil da Internet não seja interpretado à luz da Constituição federal – que às escâncaras proíbe o anonimato para a divulgação de informações –, se os provedores de aplicações não se munirem de instrumentos mínimos para identificar os seus usuários, estará chancelado o acobertamento de autores que não querem se identificar, ficando estes totalmente inimputáveis pelas ofensas que assacarem, colocando, assim, em perigo a liberdade de (verdadeira) informação e de (responsável) opinião.
Fonte: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/anonimato-tutelado/