O pecado do Projeto de Lei 2.630 não é abrir a porta para a censura. É mantê-la aberta para autores incógnitos
Por Afranio Affonso Fereira para O Estado de S. Paulo.
Não há no Projeto de Lei (PL) 2.630/2020 a potência censória que lhe é atribuída por algumas respeitáveis opiniões.
Desde o seu início, ainda que em razão de duvidosa técnica legislativa, o PL tem incontáveis e redundantes dispositivos que estabelecem, como princípio, a proteção à liberdade de expressão e opinião. Atenção ao primeiro: “As vedações e condicionantes previstos nesta lei não implicarão restrição (…) à livre expressão e à manifestação artística, intelectual (…)”. A bem da verdade, tais ressalvas seriam totalmente dispensáveis, já que a Constituição federal é taxativa na vedação à censura.
Mas o principal receio que o PL imprime a seus críticos é de que as big techs terão de exercer uma curadoria – a denominada mediação – sobre o que os seus usuários publicam, tirando do ar o que for flagrantemente ilegal. Aí estaria a sua aptidão censória.
Com todo o acatamento, a desconfiança não tem esteio.
De início, convém lembrar que a fiscalização não é nenhuma novidade. Ela é exercida atualmente quanto a manifestações nazistas, à pedofilia e até a imagens de pessoas nuas, apenas para ficar em poucos exemplos. As plataformas já removem conteúdos quetais, sem que se tenha dito que a atividade é censória. Ademais, existem no projeto diversos dispositivos sobre a possibilidade de reversão da remoção pelo moderador, em recurso direto do usuário à plataforma.
Mas não só isso. Essencialmente, o PL não tem capacidade censória porque, apesar de um tanto vago quanto ao que pode ou não pode, em última instância quem decidirá isso é o Poder Judiciário. Aliás, exatamente da mesma forma que ocorre atualmente. E o fará, como já o faz, sempre em atenção às disposições constitucionais, superiores aos princípios assecuratórios da liberdade, desnecessariamente elencados no próprio projeto de lei.
De outro lado, o PL tem a imensa vantagem de trazer as big techs à responsabilidade. É inadmissível a cândida afirmação dos provedores de que não podem ser responsabilizados pela divulgação de conteúdos de terceiros. Um salvo-conduto para quem propaga ilícitos e tem a sua atividade econômica baseada justamente na divulgação de conteúdo de terceiros. Como se fosse aceitável não arcar com o risco do negócio ao qual se dedicam.
Na verdade, ao invés de sobrecarregar as plataformas, o PL é até muito benevolente quanto às suas responsabilidades. Estas só lhes poderão ser atribuídas em casos de conteúdos pagos ou noutras raríssimas exceções. Adicionalmente, ainda que em tais hipóteses excepcionais, só arcarão com prejuízos se tiverem sido previamente notificados da ilegalidade.
Para piorar, apesar de sustentar que a responsabilidade é exclusiva do “terceiro”, que nada mais é do que o seu usuário, paradoxalmente as big techs não os obrigam a se identificar. Em outras palavras, para elas a responsabilidade é apenas do usuário, que pode ser anônimo.
Portanto, não há responsabilidade. É a irresponsabilidade do descarado e lucrativo anonimato.
Sobre este ponto o PL silencia. Não há nada a tal respeito, embora no texto original houvesse. Mas essas disposições foram suprimidas, sob a justificativa de “concentrar esforços no enfrentamento da desinformação, mais do que propor qualquer regime de identificação”. Como se uma coisa não estivesse umbilicalmente ligada à outra.
Imagine o querido leitor um delinquente que registra um endereço de e-mail novo, inscreve-se numa rede social e começa a caluniar alguém. Tudo sob algum nome fictício. Nada o impedirá, não obstante sejam totalmente mentirosas as razões de seus ataques. Mesmo que arrasem a reputação ou o negócio de alguém.
Na melhor das hipóteses, para tentar responder aos ataques ou ser indenizado, o máximo que o pobre vilipendiado poderá saber é de qual computador saiu o ataque. Não encontrará a pessoa que o desferiu.
E, para descobrir apenas o computador de onde vieram as calúnias, precisará acionar judicialmente a rede social e esperar o processamento de um sem número de recursos. Só para, quiçá, saber de qual computador vieram as ofensas. O real ofensor? Esqueça. Estará protegido pelo anonimato, no qual o PL não toca.
Ouso afirmar que as fake news seriam mais diretamente combatidas caso fosse obrigatória a identificação séria dos usuários de redes sociais, de e-mails, etc.
Sem a correspondente responsabilização por excessos, a ilimitada liberdade de expressão é uma arma da irresponsabilidade. Um direito absoluto. Um sobredireito que subjuga todos os demais. Mas a responsabilização obviamente depende da identificação. Daí porque, como manda a Constituição federal: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
O pecado do PL não é abrir a porta para a censura. É mantê-la aberta para autores incógnitos. Perde-se a preciosa chance de regulamentar a proibição de anonimato, essa vital regra constitucional que é hoje afrontada.
Fonte: https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/fake-news-censura-e-anonimato/